quinta-feira, 26 de junho de 2008

Tomás de Aquino urbanista



Propuseram-nos escrever um pequeno texto acerca de Tomás de Aquino e a sua concepção de cidade, nas vertentes políticas e urbanísticas.
Comecemos por expor qual a origem e a finalidade da cidade, segundo Aquino. Ora, os homens unem-se uns aos outros por uma condição da sua própria natureza. O homem é por natureza um “animal sociável e político” que vive em conjunto. A finalidade da vida em comum, ou seja, da cidade, é o bem-estar dos indivíduos. A cidade tem como finalidade ou ordena-se, em última instância, à felicidade do homem. Importa, por isso, que tenha todas as condições que permitirão ao homem ter uma boa qualidade de vida. É importante mencionar que, para Aquino, este fim da cidade, que podemos designar de terreno, subordina-se a um outro fim, último, que é a beatitude celeste.
Tomás de Aquino refere que há duas coisas essenciais para a boa vida do ser humano enquanto indivíduo: a acção segundo a virtude e possuir bens corporais necessários para que se possa exercer a virtude. Para haver a boa vida da multidão requer-se que haja uma unidade entre todos, que a multidão seja incitada às boas acções e, por último, que haja abundância de bens indispensáveis ao bem viver. O governante deve providenciar para que se conserve este estado na multidão. Deve também substituir os homens encarregues das diversas funções; deve usar a lei, prémios e castigos para induzir os homens às boas obras; por último, deve o rei também tomar as devidas medidas para tornar a cidade segura.
A função do governante é, portanto estabelecer, manter e promover a vida recta entre os seus súbditos. Para regular a vida neste domínio o príncipe deve dar recompensas e penalizar aqueles que não cumprem as leis, deve também defender o povo contra ameaças externas.
Quanto às preocupações urbanísticas, Aquino, faz no De Regno[1], uma breve exposição acerca das condições geográficas em que deve ser fundada uma cidade. Também o urbanismo existe enquanto proporciona o bem-estar dos indivíduos. Pelo menos no De Regno de Tomás de Aquino, não encontramos uma preocupação estética do espaço urbano. A organização geográfica da cidade é sempre com vista a proporcionar o bem-estar dos indivíduos. O que não quer dizer que na Idade Média não existisse essa sensibilidade estética. Encontramos, por exemplo, vários tipos de jardins, que existiam, não somente para uma utilidade prática, mas também para recreação e lazer. Os jardins eram todos privados, pois ainda não existia a necessidade da criação de espaços verdes, só durante o pleno desenvolvimento da Revolução Industrial, em 1843 aparece na Inglaterra o primeiro jardim público, o jardim de Birkenhead, criação de Joseph Paxton. Não é de admirar que tenha tardado tanto tempo a aparecer no mundo ocidental o primeiro jardim público, só durante esta época as cidades começam a ficar saturadas.
Os hortus conclusus, espaços fechados, de uso privado, usualmente jardins situados nos claustros, geralmente com uma fonte no centro, tinham um valor estético, também funcional, no caso dos jardins medicinais, e até simbólico: a fonte no centro representava a “fonte da vida”, da água viva do baptismo.
Nos dois capítulos finais do DR, Tomás de Aquino tece algumas considerações acerca do local onde deve ser fundada uma cidade. Vitrúvio[2] é a grande influência de Aquino nestes dois capítulos finais.
Para se fundar uma cidade deve-se escolher uma região com um clima temperado, pois é o melhor para os habitantes. Isto em vários sentidos, primeiro no que respeita à saúde. O clima temperado conserva o corpo e dá longevidade. A esta concepção subjaz a doutrina dos humores[3].
Segundo, porque as regiões temperadas convêm mais nas situações de guerra. A explicação que o Doutor Angélico dá é, mais uma vez, fundamentada na doutrina dos humores: os climas temperados dão origem a homens que desprezam os ferimentos e a morte, destemidos e prudentes.
Por último, a política faz-se ou é própria de zonas com este tipo de clima: «As que, contudo, vivem nas zonas médias são dotadas tanto de intelecto como de ânimo, resultando não só perseverarem livres e poderem viver ao máximo politicamente, mas também saberem mandar nos outros»[4].
Depois de escolhida uma zona temperada para fundar a cidade é necessário uma escolha também de um local que tenha um clima salubre. Aquino faz notar que o convívio entre as pessoas fundamenta-se ou constrói-se a partir de um ambiente externo que seja propício a esse fim. Diz Vitúvrio (e Aquino) que o local mais saudável é o elevado, pois é bem arejado, impedindo que o ar se torne impuro; deve ser um local afastado dos pântanos que exalam gases venenosos.
O lugar que se destina à fundação da cidade tem de ser temperadamente exposto ao calor e ao frio. O fundador da cidade dever ter, por isso, atenção aos pontos cardeais, à exposição ao sol segundo os pontos cardeais.
Com estas considerações termina a obra escrita pela mão de Tomás de Aquino, tendo sido o resto escrito por Ptolomeu de Luca, como já dissemos no início da exposição.


[1] De Regno foi escrito entre 1265 e 1266; é um texto que foi deixado incompleto, tendo sido terminado por Ptolomeu de Luca, um discípulo de São Tomás. É dedicado ao rei de Chipre.

[2] Arquitecto e engenheiro romano que viveu no século I a. C., escreveu o De Architectura.
[3] «Fundamentava-se numa classificação quaternária do cosmos, que estabelecia quatro tipos de temperamentos, conforme a predominância no organismo de um entre os quatro componentes líquidos (=humores) que determinam a compleição do mesmo: a bílis amarela, a fleuma, o sangue, a melancolia ou ‘atra bílis’. Por sua vez, haveria uma correspondência entre os quatro humores, os quatro elementos físicos constitutivos da realidade (fogo, água, ar, terra), as estações do ano (Verão, Inverno, Primavera, Outono), as idades da vida (maturidade, velhice, juventude, envelhecer), as horas do dia (o meio dia, a noite, a manhã, o entardecer), e os planetas (Vulcano, Neptuno, Minerva, Saturno). Nesse quadro, a prevalência da bílis amarela determina o temperamento colérico, a prevalência da fleuma determina o temperamento fleumático, a prevalência do sangue, o sanguíneo, e a prevalência da melancolia, o temperamento melancólico.
Os humores eram considerados como os factores ‘responsáveis’ seja pela saúde seja pelas doenças do organismo. A complexio sanguinea era geralmente considerada pelos médicos como a mais saudável, e por outro lado, a compleição melancólica era julgada como a mais doentia, sendo acompanhada por distúrbios psíquicos em diversos graus (medo, depressão, delírio). Esta caracterização psicológica do melancólico depende da qualidade própria da atra-bilis de influir sobre os estados de ânimo. Os excessos na quantidade e no estado térmico deste humor seriam a causa da loucura, sendo que a genialidade seria devida à predominância moderada do humor e ao seu estado térmico temperado. A ambiguidade dos sintomas psíquicos da melancolia tornara pouco claro o limiar entre doença e normalidade, entre disposição e moléstia, sendo o tipo melancólico cada vez mais retratado pela literatura médica, em termos psicológicos (Klibansky, Panofsky e Saxl, 1983).
Gradualmente, a todos os humores é atribuída a capacidade de determinação psicológica inicialmente reconhecida apenas à melancolia. O médico romano Galeno, no primeiro século depois de Cristo, sistematiza esta visão psicossomática afirmando que os quatro humores contribuem para a determinação das qualidades morais e mentais dos indivíduos. Deste modo, ao longo da Idade Média, abriu-se o caminho para a transformação da doutrina dos humores numa teoria psicológica dos caracteres e tipos de personalidades. Todavia, segundo Klibansky, Panofsky e Saxl (1993), o agente desta transformação não foi propriamente a Medicina e sim a Filosofia escolástica. Esta relacionara a teoria dos temperamentos ao dogma teológico do pecado original, atribuindo assim aos humores uma significação moral. A Idade Média incumbiu-se também das traduções nos idiomas vulgares e da difusão da teoria dos temperamentos, de forma a incorporá-la no património da cultura popular e da medicina prática»: M. Massimi, A Teoria dos Temperamentos na Literatura Jesuíta, nos séculos XV e XVI, Atalaia – Revista do CICTSUL in http://www.triplov.com/atalaia/massimi.html.

[4] DR, livro II, cap. I, 52.