domingo, 27 de janeiro de 2008

Aristóteles entre os árabes

À semelhança do que aconteceu no seio da igreja, a partir da Metafísica de Aristóteles, os pensadores árabes heterodoxos extraíram a teoria da eternidade da matéria e a negação de todos os atributos humanos do Deus do Corão. Outros pensadores tentaram conciliar a doutrina da criação com a doutrina da ausência de atributos em Deus. Deus não pode ter criado sem o querer. Como superar então esta dificuldade? Através da teoria que concebe os atributos como existindo sem um substrato. Desta forma a vontade pode existir sem um substrato e esta é a vontade pela qual Deus cria.
Alguns pensadores árabes sustentaram, a partir das doutrinas aristotélicas, em oposição ao fatalismo do Corão, que a providência de Deus abarca somente os universais, não o acidental nem o singular. Mas, segundo os ensinamentos do gnosticismo e do neoplatonismo, pelos quais foram também influenciados, defendem a existência de mundos intermédios que são os responsáveis pelas acções do singular e do individual, que serão posteriormente objecto de condenação pelo Bispo Etienne Tempier.
Outra problemática que preocupou os árabes foi a questão do conhecimento. Como é que o intelecto, que é imaterial, pensa o material? Onde é que reside o vinculo entre as duas dimensões? Aristóteles coloca-o no intelecto agente. Ele refere que o intelecto se adapta a todas as coisas. O intelecto agente está sempre activo; está eternamente activo; não há momentos em que pense e outros em que não pense. Ele é imortal e eterno. O intelecto agente não se deixa afectar pelo objecto. O intelecto paciente ou passivo é receptivo, perecível e não consegue pensar nada sem a ajuda do intelecto agente.[1]
Os filósofos árabes em seguida encarregaram-se de explicar a existência deste misterioso intelecto agente. Encontraram a solução num escrito apócrifo de Aristóteles (que designavam de Teologia, que mais não era do que uma obra de Plotino). Nesta obra leram como Deus, ao contemplar a sua absoluta e verdadeira unidade, formou a Primeira Inteligência.[2] Esta é a primeira de uma série de inteligências da qual é, finalmente, derivado o intelecto agente de que fala Aristóteles. A maneira como as inteligências procedem umas das outras é, mais ou menos, desta forma: há nove esferas celestiais.[3] A Alma é o princípio do seu movimento. Esse movimento é circular e pressupõe uma finalidade particular, que implica desejo.[4] O objecto de desejo é a Primeira Inteligência. Mas a diferença no movimento deve-se à diferença do desejo. Por conseguinte, cada esfera deve ter, além da Primeira Inteligência, uma inteligência inferior para regular o seu movimento. Existem, portanto, nove outras inteligências emanadas da Primeira Inteligência. São conhecidas como inteligências separadas[5], que os teólogos, numa tentativa de conciliar a doutrina aristotélica com a ortodoxia cristã, traduziram por “anjos”.
A mais inferior dessas inteligências separadas, que preside ao movimento da esfera mais próxima de nós, a Lua, é o intelecto agente, por cuja influência o intelecto passivo ou paciente dentro de nós se torna activo e se torna intelecto em acto. Quando ele se torna acto é designado de Intelecto Emanado ou Adquirido. Atingir este estado é a finalidade de todo o esforço para alcançar a perfeição.
Desta forma, os filósofos árabes circunscreveram o intelecto agente num local e deram-lhe um nome. Este intelecto agente, que eles concebem como o intelecto único de toda a humanidade, é onde todos os outros estão imersos.
A alma, afirma Averrois, “não está dividida segundo o número dos indivíduos; é a única e a mesma em Sócrates e em Platão: o intelecto não possui individualidade; a individuação procede da sensibilidade”.[6] Será que Averrois ou qualquer outro filósofo árabe queria dizer que este intelecto agente era uma “humanidade permanente e viva”?[7]
O intelecto agente parece ser algo afastado da humanidade, uma criação distinta, à qual uns poucos favorecidos podem chegar.
Cremos que tem cabimento aqui expor em traços gerais o pensamento de Averrois, uma vez que foi o filósofo árabe mais influente na escolástica, que deu origem ao chamado averroismo. O amor de Averrois à filosofia é uma espécie de religião. “A única religião para os filósofos é fazer um profundo estudo de tudo o que existe; portanto, não podemos prestar um culto maior a Deus do que conhecer as Suas obras, que provocam conhecer-Lo em toda a Sua realidade”.[8]
A admiração deste pensador árabe por Aristóteles não conhecia limites: “Este homem tem sido a regra da Natureza e um modelo no qual ela procura expressar o tipo da perfeição última”.[9]
Ele fez epítomes de Aristóteles, ele parafraseou Aristóteles; ele comentou Aristóteles. Estas três operações ficaram conhecidas como os seus três comentários. Averrois era designado pelos escolásticos ocidentais de Comentador. São Tomás de Aquino aprendeu e seguiu o seu método. Tal como Averrois, Tomás de Aquino não conhecia a língua de Aristóteles, mas ele socorreu-se do irmão William de Moerbeke, como já referimos atrás, para elaborar traduções directas do grego.
Durante cerca de dois séculos o grande Comentador continua a ofuscar os escolásticos. Ele é citado, comentado e refutado. Através dele todos os erros da filosofia árabe passaram para dentro da Igreja, e juntamente com os de Aristóteles, produziram inúmeras disputas e doutrinas incompatíveis com a fé cristã.

[1]Cf. ARISTÓTELES, De Anima, III. v. 2.

[2] Cf. Theologia Ægyptior., lib. XIII. cap. VII.

[3] Cf. ARISTÓTELES, Metafisica, XII. cap. 7, 8.

[4] Cf. ARISTÓTELES, De Caelo, II. XII. 3.

[5] Vd. AQUINO, Tomás, De Substantiis Separatis, cap. II, xvi. p. 184.

[6] Vide RENAN, Averrois et l’Averroisme, p. 155.

[7] “ Une humanité vivante et permanente, tel semble donc être le sens de la théorie averoïstique de 1'unité de 1'intellect”. (Renan, loc. cit., p. 138).

[8] MUNK, Melanges, p. 456

[9] AVERROIS, Comment., De Anima, 1. iii.

As condenações de 1277

Existiam, na Faculdade de Artes, duas orientações divergentes: de um lado Siger de Brabante liderando um grupo de mestres que professavam um racionalismo e um aristotelismo heterodoxo; do outro lado os mestres que adoptam um aristotelismo moderado que respeitava a visão cristã do mundo.

Quais os verdadeiros motivos da condenação de 1277? O que foi verdadeiramente condenado pelo bispo de Paris? Qual ou quais foram os objectos da condenação?

Para Piche, a censura de 1277 representa um signo revelatório de uma situação histórica de crise do pensamento onde as figuras conflituais do espírito humano são colocadas em jogo: em 1277, uma racionalidade religiosa estabelecida opõe-se a uma intelectualidade que se quer axiologicamente neutra relativamente à religião. Em 1277 uma moral teologicamente cristã digladia-se com uma ética filosoficamente laica.

Ainda que se possa pensar que a condenação não teve efeito fora da jurisdição do episcopado de Paris, o decreto do bispo Tempier é detentor de uma acção simbólica e moral que se estende para lá dos limites da diocese de Paris, porque provém da metrópole intelectual da cristandade latina e se dirige aos membros do mais prestigioso centro de estudos filosóficos e teológicos da época – a Universidade de Paris.

O bispo não actuou sozinho na censura. O papa João XXI mandou-lhe que fizesse uma investigação sobre os promotores e os locais de difusão de certos erros doutrinais. Tempier reúne para esse propósito uma equipa de pesquisa de 16 teólogos, entre os quais se encontrava Henri de Gand. A estes teólogos cabia a tarefa de examinar a literatura filosófica suspeita a fim de lhes extrair as ideias heterodoxas. A comissão dirigida pelo bispo de Paris recolhe assim, num curto espaço de tempo, que vai de três semanas a um mês, um conjunto desorganizado de teses que foram reunidas aparentemente sem qualquer critério de ordem e que deram origem ao sílabo dos 219 artigos.

A censura do bispo de Paris é um sintoma de uma cultura universitária dividida entre a sua fidelidade aos imperativos do pensamento cristão tradicional – ou seja, pela Escritura teologicamente interpretada pelos Padres latinos, principalmente Agostinho – e a atracção irresistível exercida sobre esta cultura sapiente pelos novos modos de representação do divino, do mundo e do homem que lhe são oferecidos pelos sistemas filosóficos elaborados pelos pensadores peripatéticos e Aristóteles e que entram em alguns pontos em contradição com os dogmas fundamentais do catolicismo.


O Bispo Tempier havia já condenado em 10 de Dezembro de 1270 treze erros doutrinais. Estes treze erros irão fazer parte da condenação posterior de 1277.
O decreto de 1270 continha erros doutrinais acerca da omnipotência de Deus: que Deus não conhece nada mais para além de si mesmo; que não pode aprender as realidades singulares e, que, por consequência, a acção humana escapa à sua providência. Deus não pode transgredir o estatuto ontológico do mundo material onde os seres são inexoravelmente sujeitos à mudança e à corrupção, portanto, ele não pode dar a imortalidade a algo mortal, ou seja, não pode ressuscitar um corpo. Estes erros referem-se a enunciados teológicos.
Quanto à cosmologia defendia-se nos artigos condenados que o mundo é eterno, que o mundo sublunar era determinado pelo movimento dos astros.
Defendia-se também o monopsiquismo, atribuído a Averrois: o intelecto de todos os homens é único e numericamente idêntico para todos, tanto o intelecto agente como o paciente, é, assim errado dizer que o homem intelecciona, convém antes dizer que o intelecto, substancia espiritual radicalmente separada de todo o individuo concreto, pensa no homem ou por intermédio deste.
Por conseguinte, o homem, enquanto indivíduo, não terá qualquer sanção ou recompensa numa vida futura, uma vez que o intelecto não lhe pertence. Como sustenta uma outra proposição condenada a alma humana, a forma que faz com que ela seja determinado ser e não outro, é destruída com a corrupção do corpo; dito de outra forma, ela não passa de uma forma material que não sobrevive ao desaparecimento do corpo.

Representação do divino, visão do mundo, concepção do ser humano; teologia, cosmologia, antropologia, psicologia: estes planos do pensamento filosófico estão em completa oposição com os dogmas católicos.
A filosofia colocará às universidades medievais a questão de saber qual deverá ser a linha de demarcação que separa as disciplinas filosóficas e as teológicas, o problema da distinção entre obra do pensamento elaborada pelos filósofos e ciência sagrada constituída racionalmente sobre a Revelação bíblica. O problema da delimitação de domínios subjaz às condenações de 1270 e mais tarde, em 1272 irá ter um eco institucional, uma vez que os mestres de artes apoiaram o estabelecimento de novos estatutos da faculdade em Paris. Será uma solução, sobre o ponto de vista académico, ao problema do limite epistemológico, a fronteira do espírito para além do qual os artistas não se poderiam aventurar no ensinamento filosófico.

Causas da condenação de 1277:
I. A vontade de preservar a ortodoxia católica.
A emergência de um saber pagão global, oposto em muitos pontos aos dogmas cristãos, alvo de denúncias e condenações da parte dos teólogos e dos homens da Igreja, está relacionada com dois factores culturais: a tradução para latim das principais obras do peripatetismo grego-árabe e, por outro lado, a sua integração progressiva no seio da cultura intelectual das universidades.
É o próprio bispo de Paris que refere que o que leva à condenação das teses é a luta contra os “erros execráveis” dos artistas. Colocam-se duas questões: as teses denunciadas pelo bispo como heterodoxas tinham realmente defensores, eram realmente ensinadas na Faculdade de Artes de Paris? E se a resposta for afirmativa, em que contexto foram elas apresentadas pelos magistri artium?

Os grandes temas em torno dos quais gira a condenação de 1277 são uma teologia minimalista da ciência e do poder divinos; uma cosmologia eternalista e estruturalista, ou seja, a visão de um mundo estruturado eternamente segundo os princípios físicos e metafísicos intrínsecos que aos quais até mesmo ser divino deve respeitar mesmo que ele intervenha na ordem cósmica; uma antropologia determinista, a saber, primeiramente a concepção de uma vontade humana onde o livre-arbítrio está fortemente subjugado seja pelos julgamentos do intelecto divino (determinismo psicológico), seja pelo impulso dos desejos, dos apetites ou dos objectos apetecíveis (determinismo das paixões), seja pela influência das esferas celestes (determinismo astral), e em segundo lugar, a colocação fora do sujeito da faculdade intelectiva, ou seja, a ideia segundo a qual o intelecto na sua integralidade – enquanto potência receptiva das espécies inteligíveis (intelecto passivo) que como principio activo capaz de abstrair os conceitos das coisas ou das suas imagens sensíveis (intelecto agente) – não pertence propriamente a alguma subjectividade individual, dito de outra forma, está radicalmente separado de todo o individuo humano e é único para todos os homens (a famosa doutrina do monopsiquismo). Daqui decorre por um lado a impossibilidade de imputar a responsabilidade e a não sobrevivência da alma relativamente ao corpo.

Gabinete de Filosofia Medieval

http://web.letras.up.pt/ifilosofia/gfm/filosofia_medieval.html